domingo, 29 de maio de 2011

MÁGICO MOMENTO


A rede vem, vai.
A chuva cai.
Lambe a telha,
cai na calha.
Um passarinho
mergulha .
A água baila,
no ar.
Um arco-íris
colore o momento.
A rede vai, vem...
Entardece.
A magia do momento
adormece.


Valença, 22/02/2010

terça-feira, 24 de maio de 2011

A complicada arte de ver


Rubem Alves
colunista da Folha de S.Paulo

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."

Marcelo Zocchio
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato, facão_ era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas _e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso _porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver_ eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...


Rubem Alves, 71, educador, escritor. Livros novos para crianças e adultos-crianças: "Os Três Reis" (Loyola) e "Caindo na Real: Cinderela e Chapeuzinho Vermelho para o Tempo Atual" (Papirus).

AS MARÉS


Mares.
Marés
matinais.
Vêm. Vão. Voltam.
Suavemente Transpassam limites.
Acariciam. Lambem. Lavam.
Demarcam territórios.
Bordam castelos.
Colorem sonhos
Capturam quereres.
Filiam –se. Espraiam-se.


Mar.
Maré.
Vem.Vai.Volta.
Arde. Cresce. Trasborda.
Rude. Forte. Libidinosa.
Penetra. Encharca. Funde-se.
Ao sabor do vento
esculpe formas.
Agrestes. Firmes. Eróticas.
Suaves. Frágeis. Doces.
Entardece.



Valença, 05/ 01 / 2007

Selma  Monteiro Pereira





segunda-feira, 23 de maio de 2011

MINHA CIDADE

uma existência simples, numa simples cidade.
simplicidade que aninha uma vida
que de tão simples acalma o íntimo.

dizer não ao burburinho da grande cidade,
à pressa, ao falatório proverbial,
à voracidade dos acontecimentos.

os dias a passar devagar.
sempre vivi sem pressa!
quanto mais agora que me falta menos!

que me cantem os pássaros,
façam-me visitas as cigarras, as flores efêmeras,
os girassóis, os amigos e a boa música!

os livros me contarão histórias
e a minha simples cidade
será plena de tudo!

encontrarei nela tempo para amar
as pessoas, a natureza
e as coisas pequenas.

pela manhã caminharei
com passos lentos
para sentir a brisa do amanhecer.

aos amigos cederei um dedo de prosa.
as crias serão alimentadas
como convém.

após o almoço uma sesta
e à noite o vinho me fará companhia
ao som meloso do jazz.

é assim a simples cidade que desejo!
e muito mais minha do que eu dela!
para ela serei apenas a simplicida
de!

Rogerio Silva, publicado no Bog Ponto de encontro

SER MULHER

Quero colher
O tempo
que me resta.
Colher  com
as mãos.
Saborear com
os olhos,
com a pele.
Com todo o corpo
entregue
à busca da
finitude do
momento.
Sentir  todas
as cores.
Odores  e
Calores.
Apoderar-me do
Infinito prazer
De  ser mulher.
Que ri,que chora.
Que ama, que odeia.
Que aceita, que se rebela.
Que se completa
em si mesma.
No outro e
com o outro
transborda
o imenso
prazer de
Con- viver.
Selma             Valença, 12/05/2011         

E SE...

E se...
Neste momento eu me  descobrisse
E  se...
Não me machucasse
A solidão
E se...
Eu me recusasse
A ver
O deserto
E se...
A água secasse
A flor murchasse
E se...
Meu coração não
Sentisse o cheiro
Do mato
E se...
A aridez fizesse
Parte de minha pele
Ressecando minha alma
E se...
A falta de vento
 Tolhesse meu caminhar
E se...
Meu horizonte
Turvo pela  ausência
Da luz
Ficasse inatingível
E se...
 A memória se
Perdesse nestes caminhos
Desfeitos pelo tempo
E se...

Selma Monteiro   10/10/2010

SE ÁGUA OU LIXO NA POESIA

O lugar onde moro                                                          
é lá na Varginha.
Todo mundo que
mora lá
joga lixo 
na valetinha.

As águas que descem  
de lá
não descem
mais limpinhas.
A felicidade
que descia
pelo meu rio,
não desce mais
como poesia.

As pessoas que
moram lá
não sabem
o que bebem
ou o que bebiam:
se água ou
lixo na poesia.

Acordo de manhã,
para o Pólo,
vou estudar,
olhando para o morro
onde moro
que não param
de desmatar.

Minha mãe
vende salgados
para a vida ganhar.
Quando chego
em casa
pego a caixa
e saio a trabalhar.

Mas do que
mais gosto é
de soltar pipa
por lá.
Quando não tenho
nada a fazer
sento perto
da ponte e
fico vendo a
água passar
e a imaginar
que o lugar
onde vivo
vai melhorar
como esta
poesia
que acabo
de inventar.


Poesia de meu ex-aluno, na escola do Pólo Agrícola. Vencedora, a nível estadual, do PROJETO ESCREVENDO O FUTURO.
Juliano Silvério               16/08/2004.


quinta-feira, 5 de maio de 2011

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.
Cecília Meireles

TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Ferreira Gullar